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"As
coisas estão a mudar"
Foi preciso que a tecnologia do disco se democratizasse para este improvisador
português da segunda geração conseguir mostrar o seu
trabalho no seu próprio país natal e fora de portas. Foi
longa a espera mas valeu a pena…
Rui
Eduardo Paes
«Self
Eater and Drinker» foi, em 1998, o prenúncio do que estava
para vir. Depois, entre 2001 e 2002, veio a confirmação
com quatro títulos lançados de enfiada por uma nova editora,
a Creative Sources Recordings: «Multiples», «Sudden
Music», «23 Exposures» e «Ficta», todos
eles com uma óptima aceitação por parte da imprensa
especializada internacional. Acrescentar-se-á, brevemente, o novo
«Assemblage». O violinista/violista de Lisboa está
a contribuir decisivamente para a actual projecção das novas
músicas portuguesas no mundo.
Rui
Eduardo Paes - És violinista numa área da música,
a improvisação, em que no teu país já há
um violinista com fama mundial, considerado mesmo um dos melhores: Carlos
Zíngaro. Isso coloca-te algum problema? Como te vês em relação
a ele?
Ernesto RODRIGUES - Não, de modo nenhum,
antes pelo contrário. O facto de existir em Portugal um músico
desta envergadura só nos pode beneficiar em todos os aspectos:
como percussor, na medida em que toda a música improvisada feita
em Portugal é marcada pelo seu pioneirismo; como influência
ao determinar as escolhas do universo musical de inúmeros músicos
que têm como meio de expressão novas linguagens neste campo;
como violinista/instrumentista que, dada a sua qualidade técnica,
é reconhecido unanimemente tanto pela crítica especializada
como pelos seus pares. Há ainda a vertente da projecção
internacional por ele adquirida, que funciona sempre a favor dos músicos
portugueses que pretendam dar-se a conhecer no estrangeiro. Quanto à
minha relação com ele, desde logo, é de amizade,
respeito e admiração, não esqueço que os dois
primeiros concertos de música improvisada a que assisti foram do
Plexus, ainda nos idos anos 70, grupo fundado por Carlos Zíngaro
- o que veio a despoletar em mim um interesse acrescido pelas músicas
de arte.
Rui Eduardo Paes - Já tens um longo percurso como improvisador
em Portugal, mas só recentemente iniciaste uma produção
discográfica regular. O facto de só agora começares
a ter alguma projecção internacional dá razão
ao ditado português segundo o qual “água mole em pedra
dura tanto bate até que fura”? Como vês a “cena”
da improvisação lusa e a sua evolução, se
é que há uma cena?
Ernesto RODRIGUES - As minhas primeiras experiências
neste campo remontam a cerca de 1978/79, num trio com Jorge Valente (piano) e
Carlos Bechegas (saxofone alto), época em que as oportunidades nestas áreas
eram escassas, senão mesmo inexistentes. Nesse contexto,
vi-me obrigado a enveredar por outros caminhos. A chamada segunda geração
de improvisadores, basicamente eu, Carlos Bechegas e José Oliveira,
dedicou-se igualmente a outras actividades, ainda que também do
domínio artístico. Com a explosão das auto-estradas
da informação, a intercomunicabilidade com o mundo
tornou-se tão acessível e imediata que a questão
da projecção internacional resolveu-se naturalmente. As
novas tecnologias hoje tão massificadas foram o elemento decisivo
e catalizador deste resultado - não nos esqueçamos de que
é possível produzir um CD com o mínimo de custos
e qualidade excepcional, distribuí-lo, promovê-lo e até
vendê-lo através da Internet.
As coisas estão a mudar, e acho que há, de facto, uma cena
da improvisação em Portugal, como ficou confirmado com o
festival nos Instants Chavirés dedicado aos improvisadores portugueses
em 2002. Aliás, há notícias de que também
Podewil, na Alemanha, está interessada em organizar um, para além
de um terceiro em Catânia em Itália. O intercâmbio
entre músicos portugueses e estrangeiros tem-se desenvolvido exponencialmente,
assim como o convite a músicos nacionais para actuar em diversos
países. Estes são sinais inequívocos de que existem
boas perspectivas de evolução.
Rui Eduardo Paes - A situação, no teu caso em particular,
não terá mudado precisamente devido ao facto de teres formado
a tua própria editora, a Creative Sources Recordings? A única
forma de sobreviver e marcar pontos no presente estado de coisas parece
ser mesmo o “do it yourself”...
Ernesto RODRIGUES - É óbvio que a
decisão de formar a minha própria editora foi benéfica
para a mudança relativa às minhas produção
e difusão musicais. No actual estado das coisas, a aceitação
por parte das grandes editoras estaria sempre fora de causa e a capacidade
das pequenas não lhes permitiria correr determinados riscos. Perante
esta situação, e seguindo o exemplo do que já é
prática corrente há décadas na Europa (FMP, Incus,
ICP, Ictus, etc.), optei por esta via como a mais realista para divulgar
as minhas concepções. Esta decisão não se
prende necessariamente com uma simpatia pelo “self made man”,
mas sim com as regras impostas pelo capitalismo, que não nos deixa
outra alternativa.
Rui Eduardo Paes - Achas que há uma equivalência entre a
filosofia da música improvisada e os princípios anarquistas,
que tu próprio pareces seguir? Quando se diz que a improvisação
é libertária isso não terá implicações
políticas que vão mais longe do que a mera constatação
de que se trata de uma música técnica e esteticamente libertadora?
Ernesto RODRIGUES - Essa relação entre
improvisação e liberdade teve uma expressão bastante
mais clara e explícita na primeira geração da improvisação
na Europa. Julgo que essas conotações políticas eram
mais vincadamente assumidas, até porque a relação
das ideias de liberdade com o free jazz era bastante estreita. O que verifico
hoje em dia é uma progressiva perda da componente espiritual e
política, em favor de um “positivismo” cada vez menos
solidário e mais “self-centered”.
Do meu ponto de vista, essa vertente de cariz espiritual e político
não deveria ser omitida dos cânones da psicologia da criação.
A dado momento corremos o risco de qualquer manifestação
criativa no campo artístico vir a depender única e exclusivamente
da inovação no domínio tecnológico, em detrimento
das componentes intrínsecas à arte, nomeadamente a sua maturidade
estética/conceptual, tornando-a cada vez mais formalista e destituída
de conteúdos.
Com a perda de relações extrapolativas com outros níveis
de consciência, acaba por se perder a essência primordial
de qualquer manifestação artística, que passa pela
sua relação íntima com o indivíduo, de algum
modo provocando um efeito inibidor da sua capacidade de se projectar noutros
planos, para os quais a arte e (neste caso) a música potencialmente poderiam
remeter. Esta tendência que se tem vindo a verificar não
é mais do que uma consequência previsível e inevitável
de uma realidade socio-política que cerceia intencionalmente todos
os domínios da criatividade que possam subverter a “ordem”.
Rui Eduardo Paes - Até que ponto os teus interesses culturais e
artísticos deram forma à música que fazes ou se reflectem
nela? Sei do teu interesse por movimentos alternativos como o Dada, os
futurismos italiano e russo, o Fluxus ou a Internacional Situacionista,
o teu gosto pelo cinema de um Jean-Marie Straub ou de um Syberberg e a
tua paixão pela chamada “música erudita contemporânea”,
de Nono, Berio e Ligeti a Lachenmann e Stäbler. Queres falar-me dessas
múltiplas devoções?
Ernesto RODRIGUES - Penso que os interesses pessoais
de qualquer artista, em qualquer época - salvo as excepções
determinadas por interesses da estética dominante (não nos
esqueçamos de que a estética visível é sempre
determinada pelo poder) - implicam já o seu modus operandi e a sua
originalidade, sempre que associados à sua capacidade volitiva.
O meu interesse por movimentos ou “vanguardas” que, de uma
forma ou de outra, não se identificaram com o satus quo e
representam, de facto, roturas incontornáveis, é o elemento
primordial da minha postura relativamente ao mundo e catalizador para
a minha criatividade.
O Dadaísmo, assim como o Surrealismo, vieram subverter todos os conceitos
ligados à arte, na medida em que põe em causa a ideia de
belo, de ordem, de perfeição, e defende a liberdade criativa
do indivíduo e a espontaneidade numa perspectiva provocatória,
escandalizadora e incomodativa. Posso afirmar que se trata de uma recusa
deliberada dos processos criativos até então tidos como
legitimadores da arte, os quais se encontravam ligados aos princípios
da racionalidade. Ora, essa racionalidade é intencionalmente refutada
e reformulada.
O Futurismo/Construtivismo interessou-me devido à sua contestação
dos postulados profundamente alicerçados na própria epistemologia
da arte, cuja fascinação pela máquina é comparável
à forma como hoje são abordados alguns domínios da
mesma - leia-se novas correntes da música electrónica, vídeo-arte,
etc. No caso do Fluxus, a facilidade com que figuras como Joseph Beuys,
Wolf Vostell ou Robert Filliou (a título de exemplo), escandalizaram e intervieram acutilantemente,
pondo em causa “ícones” e referências caros à
sociedade burguesa, é para mim verdadeiramente motivadora. A Internacional
Situacionista, com a sua argúcia em descodificar criticamente o
devir da nossa sociedade, pondo em evidência antagonismos emergentes
e alienantes a favor de uma visão mais consciente e humanizada,
também não podia deixar de me dizer alguma coisa, assim
como alguns movimentos que com ela se relacionaram, como o Letrismo, o
Cobra, o Spur ou o Imediatismo.
Surgiram na Sétima Arte “ensaístas” com a coragem
e a capacidade de extrapolar para o seu meio todas estas problemáticas,
ainda que de uma forma muito mais subtil. Para além desta particularidade,
o modo incisivo como complementam o cinema com a música colocou-me
perante as minhas mais profundas interrogações. Na abordagem
syberberguiana, embora seja desenvolvida a partir de arquétipos
românticos (Richard Wagner, por exemplo), com os quais já senti maior
afinidade, é de ressalvar o talento demonstrado ao sublinhar os
conceitos subjacentes a todas as conquistas até à
primeira metade do séc. XX, patentes no modo como o ritmo, o espaço,
o tempo, o silêncio, etc., são tratados, remetendo para formas
mais sublimes. Os seus últimos trabalhos recorrem frequentemente
a duas “ferramentas” interactivas bem delineadas: ao monodrama
e à imposição quase obrigatória dessa actriz
de qualidades excepcionais que dá pelo nome de Edith Clever, com
as quais nos tem legado ao longo dos anos obras de uma maturidade estética
ímpar.
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, para além de incorporarem todas estas nuances,
têm uma relação muito mais íntima com a música
do séc. XX, o que está mais próximo da nossa realidade
e do meu interesse em concreto, nomeadamente Arnold Schönberg: «Moses
und Aron», «Eilentung zu Arnold Schönbergs “Begleitmusik
zu einer Lichtspielscene”» e «Von Heute auf Morgen».
Por outro lado, o modo como traduzem a tragédia grega na linguagem
do nosso quotidiano parece-me extremamente oportuno e conseguido.
A imobilidade excessiva da câmara é obviamente intencional,
com o objectivo de focalizar o receptor nas características dos
personagens e no sentido mais profundo das palavras, não dando
azo à dispersão e ao abandono do fio condutor da obra. Os
constantes recursos às panorâmicas e aos travellings com
respiração exageradamente lenta parecem reflectir, no duplo
sentido (físico e psicológico), o modo verdadeiramente esmagador
como o silêncio assume a condição de leitmotif. Straub
serve-se recorrentemente de décors naturais onde a nudez, a amplitude
e a aridez nos sugerem a intemporalidade das questões que nos propõe.
Assim, o grande mistério das origens e do elemento primordial surge-nos
na sua forma mais agreste e perene num contraponto entre a difícil
paisagem, raramente alterável, e os costumes e mentalidades das
civilizações no que concerne às suas questões
primeiras e às suas motivações mais profundas. Mais
do que transcrever obras de referência da nossa matriz cultural,
Jean-Marie Straub pretende colocar o espectador contemporâneo no
cerne das suas questões metafísicas e ontológicas,
que cada vez mais são ignoradas e, em última análise,
permanecem imutáveis, resistindo à erosão temporal,
iguais a si mesmas desde o princípio dos tempos.
Todos estes criadores têm em comum o facto de divergirem da banalidade
e da superficialidade vigentes. O mesmo se pode dizer de toda a música
pós-serialista. Não posso ignorar a importância de
Boulez, Ligeti, Nono ou Stockhausen neste contexto, assim como a de todos os seus pares
nas diversas ramificações verificadas ao longo da segunda
metade do séc. XX, que nos legaram uma panóplia extremamente
diversificada. Assim, deparamo-nos com “escolas” completamente
autonomizadas, já não existindo um modelo a seguir como
no barroco ou no classicismo - cada compositor tem o seu
próprio universo, a sua própria matriz. Daí a enorme
disparidade conceptual e formal de um Xenakis quando comparado com um
Lachenmann, por exemplo.
Chegados ao séc. XXI, surgem-nos compositores cujas preocupações
se prendem mais com as capacidades sónicas (físicas e tímbricas)
e texturais dos instrumentos em causa, e que sabem privilegiar algo de
precioso - o silêncio. O silêncio remete-nos para nós
próprios, devendo, pois, ser altamente valorizado e contextualizado.
O silêncio anunciado por Cage ainda na primeira metade do séc.
XX tem hoje, finalmente, a importância que não lhe
chegou a ser conferida. Estão, assim, no meu entender, reunidas
as condições necessárias para que esta “categoria”
seja assimilada e vivida por todos de forma natural. Neste contexto, são
para mim muito importantes compositores como, Salvatore
Sciarrino, Rebecca Saunders, Gerhard Stäbler, Olga Neuwirth, Gérard Grisey, Toshio Hosokawa,
Isabel Mundry, Vadim Karassikov, Mark Andre, Kaija Saariaho, Iancu Dumitrescu ou Wolfgang Rihm, só para citar
alguns, cuja base de sustentação e reflexão me parece
de uma solidez e de uma importância incontestáveis.
Rui
Eduardo Paes - O teu CD «Multiples» foi dedicado a John Stevens,
o desaparecido líder do Spontaneous Music Ensemble. Porquê?
Ernesto RODRIGUES - Penso acima de tudo que John
Stevens tem importância superlativa no panorama histórico
da improvisação inglesa. Foi ele o grande “estratega”
no implemento e devir da improvisação nas ilhas britânicas
e as suas concepções foram aceites unanimemente por todos
os músicos com quem trabalhou - tanto em pequenas como em grandes
formações (SME; SMO) - a sua personalidade inventiva,
carismática e única, é-nos revelada através
de um espectro amplo de carácter ideológico, imagético
e artístico. A sumptuosa leveza e a determinação
entusiasta com que produzia o contacto e a dinâmica com os outros
músicos, fazem de John Stevens um marco deveras incontestável
nos anais de toda a free music. Paradoxalmente deixou-nos quando ninguém
o previa, mas creio que realizou o seu projecto - o de se impôr
pela sua obra em diferentes sectores de actividade. Devemos-lhe imensa
gratidão. Ao dedicar-lhe «Multiples» faço-lhe
a homenagem possível…
Rui Eduardo Paes - Apesar da tua militância na improvisação
radical, música efémera, anti-académica e, por princípio,
avessa a teorizações (circula nestes meios a ideia de que
a teoria da música é já o seu museu), procuras sempre
conceptualizá-la. Pelo menos assim interpretei a importância
que dás aos textos dos “booklets” e aos nomes dos discos
e das faixas, como «23 Exposures», em alusão à
arte fotográfica, «Ficta», referindo-te ao espaço
deixado à improvisação na música barroca,
ou “Nihil”, uma referência ao pensamento filosófico
nihilista. Essa associação entre o conceito e a improvisação
não é habitual. Como a explicas?
Ernesto RODRIGUES - Realmente embora essa ideia
de conceptualização esteja presente, ela não pretende
remeter para qualquer espécie de teorização, pelo
menos no sentido em que ela é desvalorizada neste meio. O conteúdo
dos “booklets” (nos quais reconheço inegável
qualidade poética) funcionará como uma alusão conceptual
apenas no sentido em que alude - passe a repetição - a um
universo de subjectividade referencial que naquele momento me parece fazer
sentido. Clarificando a questão, não se trata de explanações
teorizantes sobre o conteúdo passíveis de nos remeter para
leituras representativas e objectivantes, limitadoras do ponto de vista
da própria liberdade de fruição. Não tenho
de modo nenhum a intenção de, ao incluir essa “literatura”
(ainda por cima de carácter subjectivo), valorizar ou pretender
atribuir um sentido a algo que a priori intrinsecamente já o possuirá
- a Música.
Rui Eduardo Paes - Ao contrário de muitos músicos, que se
concentram no seu próprio trabalho, tu és um coleccionador
de discos e estás sempre atento ao que os outros fazem, tendo desenvolvido
uma sólida perspectiva histórica do jazz, da livre-improvisação,
da música clássica, da electrónica e dos vários
experimentalismos e uma apurada noção de quais são
as tendências do momento. Há o risco de isso te tornar excessivamente
permeável, ou é mesmo a forma de te posicionares diferentemente
em relação aos demais?
Ernesto RODRIGUES - É verdade que, desde
sempre, tive a necessidade e a curiosidade de conhecer as várias
tendências existentes nos planos artístico e cultural/intelectual,
não descurando os contextos socio-políticos em que estas
manifestações se produzem - sabendo que estes são
dois universos mutuamente influenciáveis. Esta emergência
foi fundamental para o desenvolvimento do meu espírito crítico
e bastante enriquecedora no que diz respeito à minha capacidade
relativa aos graus de exigência que procuro para o meu trabalho.
Por outras palavras, o meu sentido autocrítico foi bastante estimulado
por essa minha avidez de conhecer o que se passa à minha volta.
A questão da permeabilidade está fora de causa, na medida
em que essa minha “cultura” de procura acabou por me municiar
na reflexão consciente sobre o que vejo/oiço/leio e no estabelecimento
de níveis de leitura/hermenêutica/semiótica. É
bom lembrar que toda a evolução estética (e científica)
carece de cortes epistemológicos e que estes só ganham relevância
quando se possui uma abrangência global que implica uma plena consciência
do presente, aquilo com que se quer romper, e do devir, projecção
no futuro. Esta é a minha perspectiva, e uma vez que assumo deliberadamente
as minhas influências, a questão de me posicionar diferentemente
em relação aos demais não é, em si, uma obsessão,
mas sim uma consequência lógica e necessária para
o meu processo de busca/criação. A concepção
platónica da Reminiscência pode aplicar-se com justeza, no
sentido em que há um esquecimento do sabido/apre(e)ndido, sublimado
no acto criativo. Creio que esta tese será bastante mais realista
do que o conceito romântico de inspiração.
Rui Eduardo Paes - Tiveste um percurso no rock e na música popular
portuguesa, áreas com que rompeste totalmente há algum tempo.
O que te ficou dessas experiências? Uma má memória?
Achas que te influenciou a maneira de tocar ou de entender a música,
seja na positiva como na negativa?
Ernesto RODRIGUES - A minha experiência no
campo das chamadas músicas populares tem mais a ver, como já
referi, com a ausência de alternativas do que com uma apetência
natural por essas formas de expressão. Essas incursões não
passaram disso mesmo, uma vez que nunca me senti identificado com aqueles
contextos. O rock/pop como manifestação artística
e social afigurou-se-me como algo desprovido de todas as características
que valorizo, assumindo, pelo contrário, todos os contornos de
uma forma de “cultura” alienante, superficial, autofágica
e que apela aos interesses mais básicos e horizontais da condição
humana. Como qualquer produto de consumo, é algo de descartável.
Estou cem por cento de acordo com John Cage quando acusou a “música”
de Glenn Branca de ser fascizante, por estar associada ao poder do decibel
como realidade opressora. Com uma pequena nuance: na minha opinião,
este predicado aplica-se a praticamente todo o rock. A relação
entre a prepotência das guitarras eléctricas e o poder bélico
norte-americano é algo que não consigo dissociar. É
mais uma forma de imperialismo, mas desta vez cultural. Confesso que me
sinto bastante desconfortável perante esse mundo, não no
sentido moralista, mas na medida em que acho que tudo o que o rodeia é
precisamente aquilo que, como ser humano, gostaria de ver banido do nosso
quotidiano.
O cinema comercial, a estética televisiva, o MacDonalds e a Coca-Cola
(agentes oficializados do cancro), os mecanismos manipuladores de
informação a que somos sujeitos todos os dias, as passereles,
os Oscars, os tops, etc., apontam para um reducionismo com propósitos
bem definidos: a anticultura.
Por outro lado, o mundo da música tradicional/popular portuguesa
caiu em Portugal num inerte pântano de estagnação
sob os pontos de vista estético e ideológico. Os cantautores
portugueses, e não só, não souberam acompanhar a
evolução inevitável dos tempos, e sempre que se tentam
actualizar o produto final que nos dão a conhecer é, normalmente,
um “pastiche” desprovido de qualquer sentido de unidade e
coerência. E mais, acabam por cair nas malhas do consumismo fútil
e supérfluo, regido pelas leis da oferta e da procura - regras
impostas pelo capitalismo internacional que outrora tanto os importunava.
O extraordinário filme de Jean-Luc Godard “Sauve qui peut
(la vie)” é premonitório e aplica-se com justeza a
toda esta situação. Obviamente que há excepções…
Posso afirmar que não guardo quaisquer recordações
desses tempos. Tocar tónicas, dominantes e subdominantes com ritmos
binários sem o factor risco parece-me bem mais condizente com decoração,
no sentido pejorativo, do que com aquilo que a arte dos sons implica de
invenção, de descoberta, de investigação.
Rui Eduardo Paes - Nos press releases dos teus concertos costumas afirmar
que a tua música se encontra na intersecção de duas
“tradições”, a do free jazz e a do serialismo
e do pós-serialismo. Podes explicar-me como? De que forma entendes
esse equacionamento: trata-se de uma mistura, tipo “fusão”,
da busca de paralelismos, de transversalidades, de um duplo ponto de partida
para algo que se situará mais além e já não
se identifica directamente com o free jazz e o serialismo?
Ernesto RODRIGUES - Esse paralelismo entre o pós-serialismo
e o free jazz surgiu aquando da concepção do meu CD «Multiples».
Acho que estão bem patentes essas duas correntes, mas de
forma bem delineada. Por um lado, há a vertente da miniatura weberniana,
determinante para a duração das peças, para os temas
mais calmos e mais próximos do “near silence” e para
a economia de elementos - extrema concentração -, o que
culmina com uma simplificação de carácter contrapontístico.
Por outro, sendo um trabalho de improvisação livre, sem
qualquer estrutura estipulada ou preconcebida, é assumida a influência
da “escola inglesa”, que na sua génese é uma
derivação da new thing. Não escondo que, durante
praticamente duas décadas, ouvi e reouvi inúmeros discos
saídos desta “escola”, assim como da alemã,
o que cimentou em mim uma grande identificação. Hoje, as
referências são outras, a improvisação adaptou-se
sincronicamente aos nossos dias, mas eu “precisava” de resolver
este dilema - como se fosse uma catarse. Com o CD seguinte, «23
Exposures», o “problema” está resolvido. O mais
importante para mim é considerar que os objectivos a que me propus
são condizentes com o produto final.
Rui Eduardo Paes - O que pensas sobre o actual revivalismo do free jazz,
semelhante ao anteriormente surgido em relação ao be bop,
epifenómenos ambos das tendências culturais neomodernistas
dos últimos anos? É algo de que procuras afastar-te ou não
te preocupa?
Ernesto RODRIGUES - O que posso afirmar desde logo
é que não me preocupa. Como músico, já não
corro o “risco” da contaminação; como ouvinte,
até subscrevo essa forma de expressão. Aliás, o fenómeno
Charles Gayle, por exemplo, é algo que me agrada particularmente.
Cecil Taylor toca da “mesma maneira” há 30 anos, não?
Esse revivalismo não será uma consequência lógica
e previsível? Todos sabemos que, nos anos 60/70, o free jazz era
consumido tanto nos EUA como na Europa por uma elite burguesa (classe
universitária com simpatias pela extrema-esquerda) e, em consequência,
estes músicos procuraram projecção mediática
e espaço de manobra em Paris, ironicamente o lugar físico
do Maio de 68 - não será por acaso que este movimento ficou
conhecido como “a revolução de Outubro do jazz”.
Sei que vou gerar polémica, mas a minha opinião é
a de que hoje já há condições favoráveis
para absorver e segregar o free jazz. Na altura era agressivo e arrojado
demais. Hoje, o free jazz já não tem a carga política
e social que carregava na altura - aparece-nos mais “domado”
e mais civilizado, é mais fácil de tolerar, para além
da omnipresente sociedade de consumo, que tem meios para reciclar tudo
e todos. Não nos podemos esquecer que músicos como Peter
Brötzmann, Mats Gustafsson ou Ken Vandenmark, por um lado, e por
outro o crítico e ensaísta John Corbett, estão directamente
implicados na base deste ressurgimento. Esse “boom” recentemente
verificado valoriza, sobretudo, um certo free jazz com alguma contaminação
“mainstream”, perdendo em imprevisibilidade aquilo que acaba
por ganhar em popularidade. Em termos de mercado, é certamente
uma aposta ganha.
Parece-me, no entanto, já ter tido dias mais prósperos,
concretamente há um ou dois anos. Tenho uma ternura muito especial
por esses músicos - cresci a ouvi-los… Guardo em casa religiosamente
o “Free Jazz - Black Power” de Phillipe Carles e Jean-Louis
Comolli, sem dúvida um excelente ensaio no que concerne a essa
grande cultura audiotáctil.
Rui Eduardo Paes - Achas que houve uma real mutação quando
na Europa se passou há mais de 30 anos do free jazz para uma prática
designada como free music, caindo a vertente jazz nessa transformação,
ou a free music, como alguns defendem, ainda é parte da nebulosa
jazz?
Ernesto RODRIGUES - O free jazz é uma forma
de expressão negra que tem as suas raízes na sociedade urbana
norte-americana. Genealogicamente, os seus pressupostos originais eram
uma reacção à cristalização e ao hermetismo
a que se estava a assistir nas práticas do hard bop. O que propunha
era uma libertação total das estruturas de então
e um retorno às influências da mãe África.
O free jazz reclamou-se da tradição da “grande música
negra” e assumiu-se como protagonista do Renascimento Negro.
A free music nasceu na Europa com nomes como Peter Brötzmann, John
Stevens ou Alexander von Schlippenbach, só para referir alguns
dos seus mais relevantes intervenientes. Profundos conhecedores destas
realidades e alguns deles simultaneamente envolvidos em práticas
da música contemporânea ocidental, que já incorporava
elementos aleatórios intrínsecos à própria
escrita, estes músicos estavam numa posição privilegiada
para poderem fazer uma nova e promissora síntese. Em 1966, a RIAS
de Berlim encomendou a Schlippenbach uma peça que, por ironia do
destino, se tornaria na alma mater de todo este movimento, peça
essa intitulada “Globe Unity”, com secções rigidamente
estruturadas e escritas, mas também com grande abertura à
improvisação livre - desde então, a orquestra passou
a ser denominada como tal. Até hoje!
Nos anos 70 e 80 as práticas da free music estavam ainda bastante
ligadas à improvisação estruturada. Agora, é
cada vez mais comum a recorrência à improvisação
livre, sem grelhas estruturais, e a ausência de toda e qualquer
predeterminação. Há uma inegável tendência
para uma aproximação entre a nova música improvisada
e a música contemporânea erudita. Esta diluição
de limites é, em grande parte, resultado de uma cada vez mais habitual
prática de permuta entre estes dois universos, registando-se um
afastamento da nebulosa jazz.
Respondendo mais concretamente à tua pergunta, julgo que dentro
da free music podemos integrar o neo-free jazz e não o contrário.
Do meu ponto de vista, há, de facto, diferenças entre uma
e outra abordagem, determinadas pelas incontornáveis diferenças
nos seus contextos socio-culturais. Podemos dizer que a free music engloba
algumas das expressões libertárias e libertadoras reclamadas
pelo free jazz e algumas das concepções subjacentes à
música erudita contemporânea, à acusmática,
à música espectral, ao concretismo, à “laptop
music”, etc. No fundo, está aberta a todas as influências
ou correntes de carácter inovador.
Rui Eduardo Paes - Tens estudado regularmente com Emmanuel Nunes, frequentando
todos os seminários que este compositor faz quando vem a Portugal.
A tua admiração pela obra dele é conhecida e é
às vezes patente a influência de Nunes no teu trabalho. Porquê
esta especial afinidade pelas suas concepções? O que mais
te interessa em Nunes, tendo em conta que és, essencialmente, um
improvisador?
Ernesto RODRIGUES - Personalidades como Emmanuel
Nunes têm para mim um interesse superlativo. É um enorme
privilégio poder disfrutar de toda a sua eloquência, sagacidade,
argúcia e mestria. Como ser humano, é de uma simplicidade
e de uma generosidade assombrosas. A sua personalidade está intimamente
ligada a um forte sentido de modernidade e a sua obra é um testemunho
vivo da busca permanente de novas soluções e respostas em
matérias como o contraponto e a espacialização -
é sobretudo aqui que o seu testemunho tão unanimemente reconhecido
tem importância capital. Tendo-se afastado de correntes dominantes
na sua época, tais como o pós-serialismo ou o pós-modernismo,
determina um universo onde, através de um léxico muito pessoal,
elabora uma exploração das características sónicas/tímbricas/texturais/térmicas
dos instrumentos, com ou sem transformações electroacústicas
em tempo real. Com uma destreza notável no domínio de abstracções
tão exactas como as matemáticas, é frequentemente
rotulado como demasiado frio, mental ou rígido - epítetos
com os quais estou totalmente em desacordo.
No fim de um concerto meu nos Instants Chavirés, alguém
do público perguntou-me se a peça que tínhamos acabado
de tocar era da minha autoria ou se teríamos interpretado uma obra
do Emmanuel… Respondi-lhe que tudo tinha sido improvisado. Nos seus
seminários, as partituras das suas obras são dissecadas
e analisadas ao mais ínfimo pormenor. Ao longo dos anos, talvez
tenha assimilado e interiorizado (in)conscientemente algumas das características
que melhor definem o estilo do compositor. Emmanuel Nunes reúne
características de invulgar coerência artística no
mundo da música contemporânea escrita. Não nego as
influências, ainda para mais quando vêm de cima… no
entanto, nunca é demais frisar que não existe da minha parte
qualquer intenção deliberada de criar um resultado sonoro
que a ele se assemelhe.
Rui Eduardo Paes - O teu trabalho de composição desenvolveu-se,
sobretudo, nos domínios da electroacústica. Contrariamente
ao que acontece com a tua vertente improvisacional, na qual te manténs
distante do “mainstream”, a tua electrónica tem grandes
afinidades com a “erudita”. Porquê?
Ernesto RODRIGUES - O resultado musical de uma peça
é sempre determinado pelo “método” aplicado,
e na minha óptica só há duas maneiras de o fazer
- ou se compõe ou se improvisa. Se improviso, sirvo-me de “argumentos”
ligados à prática, à gestualidade, ao espaço
envolvente, à interacção, aos estímulos -
é tudo muito pragmático e imprevisível. Os factores
risco e erro estão sempre presentes e inter-relacionados com esta
situação. Na improvisação, o erro é
assumido e transmuta-se para planos em que pode ganhar contornos tão
ou mais importantes do que a ausência desse mesmo erro. Pode até
assumir o papel preponderante de fio condutor da peça em causa.
A dada altura podes encará-lo como mais um “motivo”
e, dependendo da “perícia” do improvisador, pode ser
levado para níveis ou caminhos nunca antes intuídos/codificados.
O mesmo não se passa no acto de compor, visto que temos o tempo
do nosso lado, e podemos apagar, mudar, remediar, emendar, reflectir,
etc., tomando a opção que mais nos agrada ou que é
mais coerente com o “todo” da partitura. É exactamente
aqui que reside a grande diferença entre os dois “métodos”.
Por exemplo, se analisarmos uma partitura de Penderecki, notamos que a
dado momento, no compasso y, pode surgir uma transposição
a nível rítmico, melódico ou harmónico (com
variadíssimas probabilidades matemáticas), de uma precisão
milimétrica e que se referiria ao compasso prévio x. Na
improvisação, este fenómeno seria de todo impossível
de ocorrer. Esta extrema complexidade, com objectivos bem marcados, pode
atingir níveis de relações impossíveis de
se coadunar com o tempo real. Daí eu estar profundamente dividido
entre estes dois mundos e não poder dizer que um se sobrepõe
ao outro - complementam-se. Vejo-os como pólos díspares
e até opostos, embora se proponham atingir o mesmo objectivo -
a música. É, talvez, por eu ter intuído e assimilado
vincadamente esta abordagem “académica” da composição,
que relacionas à partida a minha electrónica com a “erudita”.
Com a entrada em cena do software específico MAX/MSP, que nos dá
possibilidades quase infinitas e vem abrir um vasto leque de novas
hipóteses composicionais, começou-se a explorar “instrumentos”
de trabalho de grande especificidade (FFT, granulares, etc.) e os resultados
ganharam outros contornos. Se, por um lado, temos hipóteses novas
e que nos permitem inovar, por outro deparamo-nos com demasiados lugares
comuns ou impasses, na medida em que anda tudo à volta do mesmo.
De qualquer modo, há muito boa electrónica editada quase
todos os dias. Está na cabeça das pessoas dar a volta por
cima. “O problema não está naquilo que se usa, mas
sim naquilo que se faz”, comentou-me Emmanuel Nunes a este propósito…
Rui Eduardo Paes - Contra a cristalização de certos procedimentos
na improvisação mais convencional, aqueles mesmos que transformaram
a chamada “música não-idiomática” em
mais um idioma, tens procurado novas vias e novas soluções.
Também achas mais importante improvisar do que tocar “música
improvisada”, como advoga a nova geração de improvisadores
que preferem não se apresentar como tal?
Ernesto RODRIGUES - É claro que, com a erosão
do tempo (esse grande escultor), tudo se revela adequada ou inadequadamente
aos nossos olhos. É isso a dialéctica histórica.
O grande “motor” evolutivo da história não recua
nem pára, e nós seres humanos somos os “princípios
reactivos” dessa evolução. Quando há duas ou
três décadas Derek Bailey enunciou as bases da chamada “música
não-idiomática”, pondo em prática exaustiva
e sistematicamente esses mesmos princípios, depois adoptados e
correspondidos pelos músicos mais desprendidos de (pre)conceitos,
lançou novas concepções, tanto teóricas como
práticas, num terreno já em si avesso a cristalizações
ou estagnações. O que não quer dizer que essas teorizações
fossem axiomáticas, irreversíveis, estanques ou até
imunes às leis da geração e da corrupção...
As “mutações” que verificamos ao longo da história
do homem são necessárias e conformes com essa mesma condição.
A memória lega-nos de forma geral quase tudo o que foi marcante
em determinada época, seja no bom ou no mau sentido.
Improvisar ou “tocar música improvisada” é-me
indiferente. A fasquia que coloco é a de tentar ser coerente comigo
próprio e de fazer corresponder o mais possível a música
que faço com as exigências de qualidade, frontalidade, autenticidade
e contemporaneidade, ainda que com a devida consciência da subjectividade
e da relatividade destes atributos. Talvez ingenuamente, tenho uma certa
dificuldade em admitir o divórcio entre a vida e a obra de qualquer
artista - a ética e a estética não são separáveis.
Sei apenas que o conceito de “arte pela arte” não me
preenche.
Rui Eduardo Paes - Julgo que, devido a um cansaço teu em relação
ao expressionismo extremo, ao virtuosismo e ao exibicionismo tecnicista
da música improvisada e do neo-free jazz, a partir de determinada
altura começaste a interessar-te pelas práticas emergentes
do reducionismo e do “near silence”, a exemplo de Radu Malfatti,
Bernhard Günter e de projectos como IST, Sealed Knot ou Assumed Possibilities.
O que te atraiu concretamente nas suas propostas?
Ernesto RODRIGUES - O jazz e todas as correntes
com ele relacionadas têm um carácter iminentemente expressionista.
Com todo o respeito, não é essa a via que procuro nem que
acho adequada para mim neste momento - parece-me haver formas mais subtis,
eficazes e condizentes com o panorama e as carências do mundo actual.
No meu caso, a mudança radical dá-se em finais de 1997,
quando se extinguiram os projectos a que pertencia: Fromage Digital, IK*Zs(3)
e Lautari Consort II. Logo após o termo destes três trios,
fiquei com mais espaço e disponibilidade mental para poder definir
e traçar as “estratégias” que mais me interessavam
e convinham em termos conceptuais, o que aconteceu em 1998. No ano seguinte,
com a gravação de «Self Eater and Drinker» com
Jorge Valente, pus em prática alguns dos conceitos que hoje me
norteiam. É claro que estes atributos são bem mais evidentes
em «Sudden Music» ou em «Ficta», mas a aproximação
a estas coisas que mexem com a nossa personalidade é tendencialmente
lenta.
Transpondo para os dias de hoje, os projectos que indicas, e aos quais
acrescentaria AMM, FIN e Crank, são exactamente aqueles que vão
ao encontro do que procuro e acho imperativo. Radu Malfatti é um
dos meus músicos de eleição - reconhecido no meio
desde sempre, é o mentor do trio mais in silence do planeta - refiro-me
ao seu projecto com Phil Durrant e Thomas Lehn. Para além de trombonista/improvisador,
Radu tem (cada vez mais) um pé na música erudita escrita,
aí revelando uma personalidade firme e vincada. Os Sealed Knot
afiguram-se-me muitíssimo consistentes, de “requinte”
e “bom gosto” elevados, e muito, muito “focados”.
A sua música tem o dom de subverter a ordem, com novos conceitos
de indeterminação e de uma “aleatoriedade” nada
inocente e cheia de “cultura”. Não recorrendo à
notação, é o grupo onde o limiar entre a tradição
escrita e a não escrita do ponto de vista do resultado sonoro é
mais ténue.
Rui Eduardo Paes - A música que tocas passa pela recusa do fraseado
linear, a utilização quase exclusiva do atonalismo e de
microtonalismos, a privilegiação de materiais sonoros que
vão muito para além das notas convencionalmente reconhecidas,
a incidência na elaboração de texturas em detrimento
de um trabalho estrutural, o gestualismo e a criação de
atmosferas. O que procuras realmente?
Ernesto RODRIGUES - As “características”
que enumeras são o “material” mais utilizado na abordagem
da semântica proposta pelas novas gerações da improvisação.
Tenho a pretensão de me actualizar em termos de linguagem. Se consigo
ou não, isso é sempre subjectivo e até discutível.
A dinâmica criativa dialéctica é fundamental. Os materiais
melódicos, harmónicos e rítmicos têm de ser
moldados e dissecados à luz das realidades condizentes com o mundo
sensível de cada época. Vivemos numa turbulência caótica
e incontestável, em crise de valores e até de identidade,
e tudo no mundo corre muito rapidamente. O tempo, com a sua componente
psicológica, escasseia a toda a gente. Cabe à Arte fazer
o contraponto com a realidade nua, pobre e inerte a que estamos sujeitos.
Hoje podemos fazer um excelente concerto unicamente com uma ou duas notas
(entre Fa e Fa#, por exemplo) - logo, o uso de microtonalismos, texturas,
sons de características subliminares e psico-acústicas,
drones, elementos de rugosidade, etc., são fenomenologicamente
capazes de ser bem mais apropriados. Estes atributos podem conferir à
música um lado mais telúrico ou mais escatológico
e eu gosto disso.
Rui Eduardo Paes - Tens tido a preocupação de tocar em contextos
acústicos como se os instrumentos fossem electrónicos. Com
que propósito?
Ernesto RODRIGUES - A exagerada concentração
de práticas musicais que recorrem aos computadores - “laptop
music” - é um dado aquirido, incontestável e com tendência
para aumentar. A laicização da electrónica é
também um facto insofismável… É o instrumento
por excelência das novas gerações. É cada vez
mais raro encontrar novos talentos de expressão acústica;
logo, parece-me que o devir da chamada música electrónica
está em casa das pessoas e não nas academias, como se verificava
até aos finais do séc. XX. A criatividade incontrolável
da individualidade é agora “democraticamente” aceite
e mesmo imposta. Este facto coloca-nos perante uma nova perspectiva, que
também nos revela aspectos indubitavelmente positivos. Toda esta
panóplia informática impõe novas abordagens, físicas
e semânticas, aos instrumentistas acústicos. Os que mais
me impressionam são aqueles que, ao reflectir sobre esta nova realidade,
reformularam o seu discurso e aparecem com novas concepções
e abordagens no que ao “fraseado”, ao vocabulário e
até à postura diz respeito. Os intrumentos ganham contornos
microtexturais até hoje insuspeitados. No que me toca, tento pôr
estes predicados em prática, sentindo-me bastante atraído
por esta nova pesquisa que, na minha opinião, tem alcançado
resultados positivos e até desconcertantes.
Rui Eduardo Paes - Os músicos com quem mais habitualmente trabalhas
são Guilherme Rodrigues, teu filho, com 14 anos de idade, e o percussionista
José Oliveira, também artista plástico, performer
e poeta. Podes falar-me deles?
Ernesto RODRIGUES - Com o José Oliveira há
inegavelmente uma grande cumplicidade intelectual e artística.
Somos exactamente da mesma geração e apercebi-me que, ao
longo dos anos, comungávamos das mesmas referências estéticas.
Possui uma fortíssima componente performativa e grande originalidade
em tudo aquilo que faz - agrada-me o radicalismo inerente à sua
personalidade. É o “meu” percussionista por excelência
e tem correspondido às minhas expectativas.
Em relação ao meu filho Guilherme tudo aconteceu espontaneamente:
já ele estudava música há quatro anos quando começou
a interessar-se por aquilo que me via e ouvia fazer, e também pelo
que se ouvia em casa. Foi ele próprio que manifestou interesse
em assistir aos meus ensaios e em juntar-se a nós. Logo após
a primeira experiência, percebi que ele se integrava muito facilmente,
se entrusava e entrava no espírito pretendido, denotando uma grande
versatilidade. Meia dúzia de ensaios deram origem ao primeiro CD
da Creative Sources Recordings, «Multiples». Daí para
cá tenho-o requisitado para grande parte do trabalho que produzo.
Será o embrião da quinta geração de improvisadores
em Portugal?
Rui Eduardo Paes, January 2003
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